Críticas e Matérias

Hipotermia 

http://wp.clicrbs.com.br/anexoemcartaz/2014/09/18/hipotermia-um-teatro-contemporaneo/?topo=67,2,18,,,22
"Hipotermia": um teatro contemporâneo
18 de setembro de 20140
* Por Níni Beltrame 
Para comemorar seus 30 anos de teatro, o ator Nazareno Pereira estreou Hipotermia, ontem no Teatro da UBRO, com texto de Max Reinert, catarinense conhecido por seu trabalho na Cia. Tespis, de Itajaí. O espetáculo é dirigido por Júlio Maurício, do Teatro Sim Por… Que Não?!!!, de Florianópolis.
Texto, encenação e atuação se aliam para situar o desconforto vivido pelo personagem que rememora situações vividas, se questiona pelo que fez e deixou de fazer potencializando as dúvidas sobre a existência do ser humano na sociedade contemporânea. O personagem é um e pode ser todos, não é um ser humano em especial, mas seguramente remete ao que existe de comum em todos os seres humanos.
O público pode ver uma encenação cuidada que se pautou por princípios de precisão, limpeza e economia de meios. O cenário enxuto dá a noção de um não lugar, espaço concentrado que cria a atmosfera de confinamento, clausura, asfixia. A iluminação ajuda a desenhar este mesmo espaço e colabora para criar climas e plasticidade ao ambiente. As sonoridades criadas para o espetáculo intensificam os climas de tensão e desconforto vividos pelo personagem.
Há harmonia na composição do trabalho ao utilizar os meios expressivos como luz, cenário, figurino e sonoridades primando e priorizando o uso da palavra dita. Aliás, Hipotermia é um texto para ser ouvido, sentido, lido e relido.
Nazareno Pereira, pela primeira vez solista, se entrega a uma atuação que envolve o público produzindo por vezes, estranheza, desconforto e ao mesmo tempo cumplicidade. Chama a atenção o modo como o ator domina o exíguo espaço cênico, sua familiaridade e desenvoltura no desconfortável espaço metafórico que a encenação evoca. Contenção, limpeza de gestos e ações, movimentos precisos dão a densidade que o trabalho requer.
Hipotermia exemplifica e concretiza uma das inúmeras propostas teatrais que se definem como arte contemporânea.
Espetáculo segue em cartaz hoje no Teatro da Ubro, hoje às 20h30min.  Informações: (48) 3222-0529
(*) Valmor Níni Beltrame é professor de Teatro na UDESC. 



O Olho Azul da Falecida




Rápido e ruidoso: O olho azul da falecida          

Fernando Boppré *

“Erre. Erre novamente. Fracasse melhor da próxima vez.”
Samuel Beckett 
            [Instrução: se possível, leia esse texto ouvindo The Clash]
            
            George Bernard Shaw escreveu, certa vez, que a teoria é um jogo, uma espécie de guerra entre o artista e o crítico: se o artista for bem sucedido, o cérebro analítico do crítico é desligado, caso contrário, o crítico triunfa sobre o artista.
            Pois bem, o Teatro Sim... Por Que Não?!?, encenando texto de Joe Orton, venceu.
            “O olho azul da falecida” é como um som punk: rápido e ruidoso.
            O enredo é simples, a execução mais ainda.
            Sim, estamos diante de uma farsa anárquica.
            O dramaturgo inglês Joe Orton (1933-1967) é mais um daqueles que não se cansava de dizer: o Rei está nu!
            A família, o trabalho, o casamento, o dinheiro, a morte e o luto não passam, para ele, de estruturas caquéticas, incapazes de oferecerem qualquer lastro de verdade (escrevia nos anos 1960, imagine agora?).
            O único a falar sempre a verdade ao longo da peça, Harold (Gabriel do Nascimento), é um ladrão, estúpido por natureza (“o quarto dele é um antro de perdição. Além de armas de fogo, explosivos e munições, tem aquelas 'coisas' para evitar filhos e uns pacotinhos suspeitos”, diz Fay).
            Seu pai, o recém-viúvo McLeavy (Ismar Medeiros), tem fixação por rosas (“passou a noite inteira catalogando as variedades que vinham nas coroas”). Será acusado e preso apesar de não cometer crime algum (exceto não ter se contido no momento da concepção de Harold).
            Fay (Ana Paula Possapp), enfermeira de ofício, não concorda com a eutanásia, por isso prefere cometer assassinatos, como o da esposa de McLeavy. É uma psicopata capaz de matar 7 maridos em menos de 10 anos, fora os 80 e poucos pacientes que morreram enquanto trabalhava na enfermaria do hospital George V.
            Dennis (Sérgio Cândido) é um agente funerário que serve também de coveiro. Mas ele não cava covas, mas sim um túnel que liga a sua funerária ao cofre de um banco. Criminoso atrapalhado, pé-de-chinelo, capaz de acreditar que Fay iria se casar com ele e de jurar de morte seu companheiro Harold, por causa dessa “tua mania de contar a verdade”.
            O policial Truscott (Nazareno Pereira) é um misto de arrogância, covardia e burrice (“Para a polícia, ler e escrever, só em último caso!”). Psicótico a altura de Fay, chegou a prender por 10 anos alguém que lhe acusou de corrupção e tem como prática submeter depoentes a um festival de socos e pontapés.
            Middles (Valdir Silva), assistente de Truscott, era a última esperança de honestidade, mas aparece para completar a farsa e a série de corrupções.
            E mesmo a falecida não devia ser boa coisa. Afinal, pediu para ser enterrada com o uniforme da Guarda da Rainha...
            Orton nos faz lembrar que a corrupção na polícia é endêmica, parte de sua organização mental e corporativa.
            Ele próprio teve problemas com as autoridades. Além de ser gay num tempo em que uma das funções da polícia era perseguir homossexuais, Orton puxou seis meses de cana, junto ao seu comparsa e companheiro, o também dramaturgo Kenneth Halliwell. Foram condenados pelo roubo de 72 livrarias. O fato é que ambos tinham o hábito de furtar páginas de livros (para ser preciso, retiraram, sem pedir, 1.653 folhas de livros de arte) para montarem incríveis colagens nas paredes do flat onde moravam em Londres (talvez os livros nunca tenham sido tão bem utilizados...).
            E só mesmo quem conheceu por dentro os intestinos da polícia – onde a prática da tortura de presos é quase institucional – pode escrever como Orton.
            Carregados de nonsense, em diversos momentos os diálogos não chegam a qualquer conclusão lógica.
            Lá pelo meio da encenação, Fay convoca Harold ao procênio e diz:
            - “Há uma satisfação que tem de ser dada ao público”.
            Entrega um lenço a Harold que assoa o nariz grosseiramente diante do público.
            O nonsense é mesmo uma das estratégias de defesa (e ataque) mais legítimas da escrita moderna e pós-moderna. Beckett, Ionesco e tantos outros que nos digam. Para aquilo que o poder quer preencher de deveres e direitos, responde-se com a impossibilidade de se conferir sentido.
            O policial Truscott é o símbolo da autoridade e da lei: um farsante desde o princípio já que anuncia ser da Companhia de Águas quando, na verdade, é da Scotland Yard. Truscott é aquele que quer dar inteligibilidade aos acontecimentos (uma morte e um roubo de banco), mas seu entendimento é afetado demais por seu instinto corrupto. Em uma fala dirigida a Harold, que está no chão, sendo espancado por ele, demonstra todo o seu lado educativo:
            - “Quero que você compreenda uma coisa, meu rapaz. Brincadeira tem hora. Essa meninada de hoje não respeita ninguém. Mas eu te ensino o que é respeito. Se você impedir que eu cumpra o meu dever dou-lhe um chute nos dentes que eles saem pela nuca, entendeu?”.
            Gerry Dugan, ator que interpretou McLeavy na bem-sucedida montagem de 1966, realizada pela Traverse Theatre Company, em Londres, ao ser perguntado pelo diretor Charles Marowitz sobre como a peça deveria ser representada, respondeu-lhe: “esta peça é para ser encenada seriamente sem querer ser engraçada e aí estaria a graça. Bem, isso já foi dito antes, a comédia é um negócio muito sério”.
            Talvez por isso alguns pontos da recriação de Neyde Veneziano fiquem um tanto precários. Ela insere algo de clown em McLeavy e permite algumas cenas cansativas em que as personagens se divertem com o dinheiro roubado no banco. Nada que enfraqueça a peça como um todo.
            Há algo de equivocado também, parece-me, na tradução do título da peça. “Loot”, no original de Orton, quer dizer algo como “saque”, “despojo”, “pilhagem”. Definitivamente, “O olho azul da falecida” não atende ao espírito anárquico do texto e remete a algo mais próximo de uma história detetivesca.
            Não obstante, a escolha do Grupo Teatro Sim... Por Que Não?!? por Neyde Veneziano na direção parece ser mais do que certeira: ela é especialista em teatro popular (já havia trabalhado com o grupo em outra oportunidades, destacando-se a montagem digna de teatro de revista, “E o céu uniu dois corações”, em 2005).
            “O olho azul da falecida” é tão popular que causa desconfiança na plateia culta e bem alimentada. Não há grandes lances de linguagem, nada de sofisticação formal. É tão simples quanto espaguete com carne moída.
            E para piorar a coisa, a peça é uma farsa. Não é uma tragédia, nem um drama. Não mostra o lado profundo da alma humana, não revela nada, pelo contrário, ela trabalha com uma série de clichês – o dinheiro, o casamento, a morte, o luto, o roubo de bancos. 
            O texto de Orton era igualmente popular na Inglaterra dos anos 1960, chegando também a incomodar os intelectuais (de direita e esquerda). Ele escrevia para ser compreendido e recheava as peças de diálogos como uma estratégia para não sucumbir as “exigências da linguagem”.
            E falar da Inglaterra da década de 1960 é ter em conta a força de um espírito proto-punk quando nem mesmo era preciso saber tocar seu instrumento para fazer música (a trilha sonora de Nívio Mota é excelente e foi perfeita ao escolher o som de The Clash para fechar a encenação) .
            E ao contrário do humor matraca e ordeiro que se alastrou pelo Brasil (nos teatros, no cinema, na TV e na internet, será que há porta dos fundos para quem quer um outro tipo de humor?), o texto de Orton não deixa absolutamente nada de pé.
            Como é bom se deparar com uma peça anárquica hoje em dia!
            O que liga a peça aos acontecimentos recentes? Tudo.
            Joe Orton escreveu a primeira versão da peça em 1964, numa Inglaterra onde as autoridades buscavam fornecer a falsa sensação de segurança em um mundo sentado sobre um arsenal nuclear. McLeavy, um otário forjado pela confiança e a honestidade em relação às instâncias superiores, diz logo ao início da peça: “Ora, todo funcionário público, na Inglaterra, merece confiança. É preciso ajudá-los a cumprir seu dever˜.
            “O olho azul da falecida” estreou em Florianópolis em tempos mais do que propícios. Na mesma semana, a Polícia Federal realizou a desastrosa operação de “combate ao tráfico” (de maconha...) na Universidade Federal de Santa Catarina que acabaria com 5 estudantes presos, alguns feridos e um rastro de violência pelo campus. Tudo isso aconteceu ao lado do Núcleo de Desenvolvimento Infantil (NDI), a creche da universidade. Poucos dias depois, o golpe civil-militar brasileiro completaria 50 anos.
            Uma farsa só existe em oposição a uma suposta verdade. O que a farsa faz é desnudar o que se considera normal e correto. E a polícia, em 1964 e 2014, está aí para o que mesmo?

* Fernando Boppré é historiador e curador.


Box

Trecho de “O olho azul da falecida”, de Joe Orton, com tradução de Vera Sampaio e recriação de Neyde Veneziano.

TRUSCOTT - Você já esteve na cadeia?
DENNIS        - Já.
TRUSCOTT - Por que?
DENNIS        - Mordi um policial.
TRUSCOTT - A condenação foi justa. Quantas mulheres você já engravidou?
DENNIS        - Cinco.
TRUSCOTT - (BATE COM OS DEDOS NO CADÁVER) O que é que você está fazendo com isto? Agora virou costureiro?
DENNIS        - Ia guardar no armário.
TRUSCOTT - Por que?
DENNIS        - Para esconder.
TRUSCOTT - Não vem com essa pra cima de mim. Eu já sei de tudo. Você devia ter vergonha.
DENNIS        - (PAUSA RESIGNADO) Quer dizer que estou preso?
TRUSCOTT - Por mim, estava. Mas infelizmente você não fez nada ilegal.
DENNIS        - (PAUSA, SURPREENDIDO)
TRUSCOTT   - (MASTIGA O CACHIMBO E OBSERVA ATENTAMENTE DENNIS) Onde está o dinheiro do trabalho no banco?
DENNIS        - Que trabalho no banco?
TRUSCOTT      - Onde é que foi enterrado?
DENNIS        - Enterrado?
TRUSCOTT  - O seu amigo disse que enterraram.
DENNIS        - (INDIGNADO) Mentira dele.
TRUSCOTT - Resposta assim é que eu gosto. Você é um rapaz honesto. (SORRI E PASSA O BRAÇO POR CIMA DOS OMBROS DE DENNIS). Se não colaborar comigo, eu dou um jeito em você. (DENNIS PROCURA AFASTAR-SE).
DENNIS        - O senhor é da polícia!
TRUSCOTT  - Não. Sou da Companhia de Águas.
DENNIS        - Como não? O senhor me encheu de pancadas lá no distrito.
TRUSCOTT - O que é que você estava fazendo no distrito?
DENNIS        - Suspeito.
TRUSCOTT - Suspeito de quê?
DENNIS        - Do roubo do banco.
TRUSCOTT - E diz que apanhou?
DENNIS        - Digo.
TRUSCOTT - E deu queixa a alguém?
DENNIS        - Dei.
TRUSCOTT - A quem?
DENNIS        - Ao oficial do dia.
TRUSCOTT - E o que foi que ele disse?
DENNIS        - Nada.
TRUSCOTT - Por que?
DENNIS        - Estava sem fôlego de tanto dar pancadas.
TRUSCOTT - Você tem provas?
DENNIS        - Estou coberto de manchas roxas.
TRUSCOTT - (PEGA DENNIS PELO COLARINHO E SACODE-O) Se você tornar a acusar um policial de usar violência com um prisioneiro te levo pro distrito e te arrebento os queixos. ouviu?



A Vida como ela é...

UM TEATRO VIVO DE TEATRO
Por Marco Vasques

Novo espetáculo do grupo Teatro Sim... Por que Não?!!! continua em cartaz no Teatro da UFSC. Poesia e poder de invenção. Fênix. Teatro vivo de teatro. Arte feita para conduzir o outro a beijar o tablado. Iluminuras de vozes. Carnação do tempo tatuando o outro. Clareira. Sim! Claro que sim! A clareira de Heidegger. Um pouco do espanto platônico. O corpo a serviço da experiência teatral, o corpo a serviço da poesia teatral é uma radiografia desenhada para chegar ao outro. O ator é uma ânfora de beijos, uma cisterna de olhos. Seu papel é esvaziar e encher a ânfora a cada novo espetáculo. Seu papel é tatuar a pele do espectador. Fênix novamente. Outro dia: nova busca pela poesia, pela invenção. Um Sísifo criativo condenado a rolar a pedra-poética de palco em palco. Um ator é uma iluminação: reverbera. Prometeu que domina o fogo e joga as piras viscerais ao público. Orfeu mutilado: múltiplo. Alteridade. O grupo Teatro Sim... Por Que Não?!!! é formado por muitas iluminações: reverberações. É um grupo que em cada montagem nos apresenta uma nova forma poética. Assim foi/é com Livres e Iguais e O Pupilo quer ser Tutor. Assim é com sua nova montagem A Vida Como Ela É... Faz algum tempo me dedico a pensar o teatro. E continuo a
minha reflexão seguindo os passos de Octavio Paz. Tudo que o mestre mexicano afirma para a arte poética pode ser aplicado à arte do ator. Faz algum tempo visito a poesia e o poder de invenção do grupo Teatro Sim... Por Que Não?!!!. E cada vez que saio de um espetáculo produzido pelo grupo tenho vontade de beijar o tablado, porque o resultado que eles conseguem a cada nova montagem, a cada novo experimento estético nos faz lembrar o poeta Fernando Karl: “este céu é para ser visto de joelhos”. É característica do grupo fugir às receitas, às fórmulas. Parece que estamos diante de atores/kamikazes. Terminado um trabalho bem sucedido eles nos apresentam outro completamente diferente, contudo igualmente belo. A Vida Como Ela É..., espetáculo em cartaz no Teatro da Igrejinha da UFSC, é a prova viva desse poder de reinvenção. A opção é sempre a mais difícil, o caminho sempre o mais tortuoso. Em A Vida Como Ela É... eles correram inúmeros riscos. Escolher cinco crônicas de Nelson Rodrigues é um risco imenso. Por que risco? Ora, uma coisa é pegar cinco crônicas de um autor qualquer, outra é pegar cinco crônicas do maior dramaturgo brasileiro! Nelson não fez suas crônicas para serem dramaturgia. A sua dramaturgia está na sua dramaturgia. O grupo chama as crônicas de Nelson de contos, como Mario de Andrade disse que “conto é tudo aquilo que chamamos de conto” estão perdoados porque fizeram das cinco crônicas uma costura dramática coerente, correta e fiel ao humor cáustico de Nelson. Faz-se necessário dizer que os textos selecionados foram escritos para a coluna A Vida Como Ela É...no jornal carioca A Última Hora. As temáticas são as mesmas presentes em suas peças teatrais: sexo, amor, traição, hipocrisia e poder. Vejamos: Uma senhora honesta Luci insiste em afirmar sua boa conduta e sua moral inabalável. Ao primeiro suposto gracejo de um possível amante: iluminasse o desejo e a vontade de cair nos braços de um outro que não seu esposo, Valverde. Ao descobrir que o gracejo (uma remessa de flores) fora feito por Valverde, decepciona-se. Noiva para sempre Maurício vive entre as irmãs Dorinha e Elena. O pai das meninas exige que ele escolha uma delas para matrimônio. Escolhe Elena. Resultado: Dorinha comete suicídio com o vestido de noiva que
seria usado no casamento pela sua irmã. Noiva da Morte O pai machão quer fazer de seu filho um homem viril. Fazer de Alipinho um pai de família sepultado no matrimônio convencional. Após a morte do velho, o filho noiva. Noivado arranjado pelo médico da família: supostamente amante da mãe do noivo. Alipinho casa, mas impõe a condição de que o vestido de noiva seja imenso e exuberante. Alipinho veste-se com o vestido de sua noiva, comete o suicídio. Prefere a morte ao desastre de ofender sua natureza: a homossexualidade. Doente Georgette jura amar seu marido Olímpio. Apensar do amor ela revela que não consegue deixar ser possuída por vários homens. Ela sempre o traiu: durante namoro, noivado e casamento. Olímpio a perdoa com a condição de que ela comente todas as vezes que saiu com um novo homem. E ela conta, conta, conta.... Até cometer suicídio para não mais trair. O marido havia pedido que, pelo menos quando estivesse morta, ela não o traísse mais. O grande dia de Otacílio e Odete Otacílio é o sobrinho de um senador assassino. Ele é alertado, por um tio delegado, que sua mulher está dormindo com outro homem. Um amigo que frenquenta a casa de Otacílio e Odete. Otacílio, por conta da conquista da Copa de 58, resolve perdoar a mulher e matar as galinhas do galinheiro. Dentro destes pequenos universos Nelson Rodrigues escancara as neuroses, as hipocrisias, as perversidades tanto do subúrbio quanto da burguesia carioca da época, de todas as épocas. E, é claro, há muito mais sutilezas que a simples exposição acima. Sutileza revelada no espetáculo A Vida Como Ela É... que possui um cenário limpo, criativo e funcional. Todo construído de recortes de jornais dialogando diretamente com o texto, com os atores e com as cenas. A iluminação, assinada por Luís Carlos Nem, é de um grau de exatidão e beleza plástica incomuns nos palcos catarinenses. Para dirigir o espetáculo o grupo, sabidamente, trouxe Luís Artur Nunes: um especialista em Nelson Rodrigues que foi assessorado pelo mestre José Ronaldo Faleiro. A trilha sonora
do espetáculo transita pelo clássico, pelo jazz e pela raiz da música popular brasileira. O grupo Teatro Sim... Por Que Não?!!!, nesta montagem, foi radical nas suas experimentações. Se a cada novo espetáculo do grupo se percebe usos de técnicas teatrais distintas, neste A Vida Como Ela É... para cada texto escolhido eles usam uma técnica diferente. Então temos cinco pequenos espetáculos totalmente diferentes, mas que se complementam num todo. O uso de máscaras, a dublagem, atores manipulando atores, sombras, quadros vivos, dois atores interpretando um mesmo personagem... são múltiplas e híbridas as técnicas usadas pelo grupo. A opção por dar um tratamento cômico a uma dramaturgia quase sempre associada à tragédia é outro mérito do grupo, porque aproximou muito a cena daquilo que Nelson tanto fez: escárnio absoluto de uma sociedade moralista, hipócrita e contraditória. Claro que uma e outra cena do espetáculo merece um aprimoramento. A cena em que o personagem Alipinho, por exemplo, usa o vestido da noiva para se matar apresenta um pequeno problema de tempo. Temos que pensar que o suicídio, para ele, aparece como redenção, escapismo. Então, quando ele pega o vestido não pode se dirigir diretamente à morte. Faz-se necessário uma dança ritualística antes da sua entrega carnal ao outro mundo. Mas são apenas reparos. Em cena Ana Paula Possapp, Berna Sant´Anna, Leon De Paula, Mariana Cândido, Nazareno Pereira, Sérgio P. Cândido e Valdir Silva lembram o que disse Tórtsov a Stanislavski e a Paulo Chustov em Quanto atuar é uma arte: “Nossa experiência levou-nos a crer firmemente que só o nosso tipo de arte, embebido que é nas experiências vivas dos seres humanos, pode reproduzir artisticamente as impalpáveis nuanças e profundezas da vida. Só uma arte assim pode absorver inteiramente o espectador, fazendo-o, a um só tempo, entender e experimentar intimamente os acontecimentos do palco, enriquecendo a sua vida interior e deixando impressões que não se desvanecerão com o tempo”. O grupo Teatro Sim... Por Que Não?!!! produz esta poética da imanência: o prolongamento dos sentidos. A escolha da disposição dos textos de Nelson, a preparação dos atores, a concepção cênica, o equilíbrio nas atuações, a iluminação, a escolha da trilha sonora, a escolha pelo tom jocoso para falar de nossas pequenas tragédias, as passagens feitas de um texto/espetáculo a outro, o cenário/personagem, o uso de inúmeras técnicas teatrais, a concepção do figurino, as caracterizações e a direção do espetáculo culminam num teatro vivo de teatro. A Vida Como Ela É... é um belíssimo poema, daqueles que queremos reler, sempre! Sempre!
Então, neste final de semana, todos para o Teatro da UFSC para ver teatro. Sim! Por que não?



O Pupilo quer ser Tutor


O pupilo quer ser tutor: um belíssimo espetáculo de acertos

» Alexandre Mate - “O Pupilo Quer ser Tutor” | 19/07/2008

 “Penetra surdamente no reino das palavras.
 Lá estão os poemas que esperam ser escritos. (...)
 Tem paciência, se obscuros. Calma se te provocam.
 Espera que cada um se realize e consume
 Com o seu poder de palavra e o seu poder de silêncio.”
 Procura da poesia. Carlos Drummond de Andrade

 Avaliar ou penetrar em um espetáculo sem palavras demanda percorrer uma trajetória por entre os interstícios (e eloqüência) do silêncio. A elaboração de um texto cuja construtura suprime o diálogo e passa a ser mediado por intermédio de rubricas, que indicam ações físicas, tende, no âmbito do espetáculo, a originar uma espécie de obra inaugural para cada espectador. Os múltiplos sentidos constitutivos e presentes no espetáculo, ao suprimir o diálogo, intentam uma capacidade analítica e imaginativa ampliadas, propondo um intenso dialogismo consigo mesmo. Cada espectador, premido por um conjunto de capacidades rememorativas e decorrentes de circunstâncias pessoais, cria, na condição de homo aestheticus (aquele capaz de interpretação e integração com o sensível) vislumbres e trilhares diversos, dispersos, contraditórios. De outra forma, como afirmou Charles Baudelaire esse permitir-se ou aventurar-se interpretativo conduz a uma estonteante floresta de símbolos, cujas senhas, tantas vezes abismais e desconhecidas, não agregam, ao contrário: dispersam o de-dentro de nós. Este trajeto interpretativo, muito interessante e perceptivamente isolado e trabalhoso, pode induzir a uma, caso o fruidor não desista, revisão de cânones e padrões estéticos já ajustados e, ao mesmo tempo, à (re)construtura de uma outra nova e necessária textura de sentidos.
 Trata-se, portanto, e para começar, de um espetáculo que propõe uma experiência radical dos sentidos, em que os meios termos, os relativismos, os “deixa que eu deixo” não se prestam àquilo que se poderia chamar agora de moeda de troca. Uma obra radical demanda um outro
 O dramaturgo austríaco Peter Handke, herdeiro de tradições desestruturantes na dramaturgia contemporânea, alia-se, de certa forma, às experiências de August Strindberg (dream play – peças de pesadelo); do teatro expressionista (stationen drama – drama de estações, de “calvário” pessoal); das anti-peças do teatro da absurdidade, cuja expressão mais radical pode ser encontrada nas obras de Samuel Beckett. Esse trabalho de desestruturação da linguagem estética busca, sem dúvida, também pela denúncia do mundo catastrófico, uma reordenação dos sentidos tanto estéticos como humanos. Salvo engano, a última montagem profissional do dramaturgo apresentada em São Paulo pela Cia. Elevador Panorâmico de Teatro: A hora em que não sabíamos nada uns dos outros, em 2002/2003, dirigida por Marcelo Lazzaratto, depois de 90 minutos de imagens, sem qualquer diálogo, também deixava muitos espectadores atordoados.
 Francisco Medeiros (Chiquinho Medeiros para a totalidade de nós) desponta no circuito teatral da cidade de São Paulo, na década de 1980, criando, desde esse período, uma série de espetáculos memoráveis. Criador e pesquisador inquieto e talentoso, parceiro dos artistas com os quais divide a tarefa da cena, Chiquinho não constroe apenas espetáculos, mas relações humanas por intermédio das quais o espetáculo é construído. Na estrada desde 1984, nascida em Florianópolis e hoje conhecida nacionalmente, a Cia. Teatro Sim... Por Que não?!!! arrisca e muy acertadamente na montagem de Handke.
 O espetáculo é belo! Os figurinos, a maioria dos adereços, a interpretação: rigorosamente desenhada e precisa são hiper-realistas, mas, pela dramaticidade plúmbea e pesada, assiste-se a puro teatro. O par reitor/tutor representa uma alegoria do poder, de subsunção absoluta e servil de um ao outro. Entretanto, esse par, cujas ações parecem não se completar totalmente, não são personagens, são figuras. Delas não se sabe coisa alguma: elas não têm história, têm uma relação social que se explicitará (na condição profissional) ao final da obra, com o emocionante evento da serra elétrica. A dramaturgia não é construída propriamente por cenas, mas – e na ausência de termo mais apropriado – fragmentos comportamentais de uma relação. A relação, mesmo pautada em atordoante processo de submissão, não é desenvolvida por sujeitos. Todas as ações praticadas não têm concretude social alguma. Há um contraste por oposição e
uma espécie de rigoroso cânone corporal: o pupilo obedece servilmente às determinações daquele que, relação perversa, vai ensiná-lo. Essas figuras dramáticas colocam-se na condição de coisas, são reificadas.
A música é atordoante, uivante e construída, ao que parece, não com instrumentos, mas com objetos do mundo do trabalho. A trilha pontua, nomeia, tensiona, relaxa e dança... do mesmo modo que a magistral concepção de iluminação, do mestre Domingos Quintiliano. Fernando Marés, criador da visualidade do espetáculo acerta em tudo, sobretudo nas belas tapadeiras ripadas (de dupla função) e de apreensão tridimensional. Os tocos da base têm volume e dão dimensão de largura; as ripas dão a dimensão do comprimento e da profundidade por entre suas fendas; e os desenhos em prata de algo que se parece com troncos denotam a altura e imprimem linhas diagonais.

Numa fatia de tempo sem tempo, e a folhinha apresenta apenas dias, sem registro de mês ou ano, os dois intérpretes, mesmo rígidos e marmóreos, apresentam desenhos impecáveis de composição. Seus modos de ver contrastam-se permanentemente: do distante e atento versus àquele próximo e temeroso. Metáfora de nós mesmos, impedidos da lonjura do devaneio pela obrigação daquilo que escravizante, repete e reproduz o próximo.
A dramaturgia, pode-se dizer, tem uma narrativa circular. O aprendiz começa
(e essa ação é completa) comendo uma maçã. Basicamente, durante toda a peça, uma maçã dada ao reitor, mas não aceita permanece sobre a mesa “contaminando” de vermelho, o cinza do local. Ao final, e sem ser percebido, o tutor que inicia um processo de ensinamento, que vai pressupor o prenúncio da autonomia, deixa ao pupilo uma maçã. Nessa brutalidade ungida de afeto, o pupilo, que comia ao começo aquilo que vinha de si, aceita o outro.

Alexandre Mate
É diretor e professor de História do Teatro e outras disciplinas no Instituto de Artes da UNESP e da Escola Livre de Teatro de Santo André. Mestre em Teatro pelo Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP e doutorando em História Social pela FFCLH-USP




» FESTIVAL DE TEATROPupilo e Tutor falam, sem falar, sobre o poderPublicado em 15.11.2007

Fabiana Moraesfmoraes@jc.com.br
Com uma carreira sólida e mais de cinco espetáculos no repertório do grupo, a cia. Teatro sim... por que não?!!!, de Florianópolis, trouxe para o Festival Recife do Teatro Nacional a boa O pupilo quer ser tutor, um dos "textos" mais celebrados do dramaturgo australiano Peter Handke. As aspas do texto se explicam: toda a ação da peça se passa sem a necessidade de uma única palavra. Pupilo (Leon de Paula) e Tutor (Nazareno Pereira) se enfrentam e se odeiam com altíssimo grau de intensidade - e, para expor tais sentimentos, eles não usam nenhuma sílaba. Mais do que raiva e tensão entre duas pessoas, o espetáculo, apresentado terça e quarta no Apolo, às 20h, é um excelente exercício sobre as relações de poder, da visão que dominadores e dominados têm de si mesmo e do outro.
Os dois personagens vivem confinados em uma espécie de reserva de madeira voltada para o consumo. O cenário traz diversos biombos de tábuas que, quando virados para trás, transformam-se na “casa” do Pupilo e do Reitor. A maior parte do embate entre Leon e Nazareno acontece ali, com os dois sentados à mesa. A falta de palavras não é um problema aqui: o corpo enrijecido dos personagens, os olhares poderosos e cheios de significado entre Dominador e Dominado (Leon, aliás, consegue realmente falar com sua expressão de medo) são suficientes. Também é dramática e cheia de discurso e intencionalidade a iluminação assinada por Domingos Quintiliano, que dá um show em O pupilo quer ser tutor. A luz quase branca, em vários momentos, se esmaece e aparece novamente rapidamente, em seqüência, acompanhando os momentos em que o Pupilo mostra-se mais ou menos passivo. Quando percebe que sua condição é quase irreversível, ele senta-se, finalmente de frente, olhando para a platéia. De uma das narinas, o sangue começa a escorrer. É uma cena dolorosa. E que grita.


 
O pupilo aprofunda cruezas das relações humanas
Rafael Dias
Diario de Pernambuco
Caderno Viver - Edição de quarta-feira, 14 de novembro de 2007 

O quão revelador pode estar nas entrelinhas, no não-dito. As palavras saem de cena para abrir espaço às múltiplas interpretações na peça O pupilo quer ser tutor, adaptação do texto subliminar do austríaco Peter Handke pela Cia Teatro Sim#Por que não?!!!. A montagem catarinense, encenada na noite da última segunda-feira, no 10º Festival Recife do Teatro Nacional, prescinde da linguagem falada para se aprofundar nas cruezas do ser humano. Apenas gestos, ações, fragmentos cotidianos e sons, aparentemente banais, compõem o espetáculo, que constrói um microcosmo de solidão e opressão altamente carregado.
É verdade que não há uma linha narrativa linear; a história tem uma condução fragmentária, cheia de cortes e momentos clímax de tensão ou de vazio aparente. O embate é instaurado por dois personagens, o pupilo e o tutor, interpretados pelos atores Leon de Paula e Nazareno Pereira, respectivamente, que travam um jogo de humilhações, desprezo e manipulação. A balança sempre pende para um dos lados, na lógica do superior que se sobrepõe ao subalterno, a do vitorioso sobre o vencido. A atmosfera, em tons cinza-carvão, é angustiante e não há margem para o perdão ou a complacência. O tutor espezinha, maltrata e zomba do pupilo, que a tudo obedece. Há um sadomasoquismo nesse tipo de relação, que parece ser fadada a um ciclo eterno de dependência mútua.

A peça, porém, não faz apologia ao fetiche. Num mundo verborrágico, aponta para a crítica às relações lobotomizadas e àquilo que há de desumano e perigoso nas relações de poder. (R.D)
 



Mostra do Recife abre espaço para reflexão e formação

Debates contribuem para apurar o olhar do espectador para peças difíceis como O Pupilo Quer Ser Tutor, de Peter Handke
Beth Néspoli
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Na abertura do Festival Recife de Teatro Nacional, sexta-feira, os realizadores anteciparam planos para o evento tornar-se internacional. O desejo de avançar é natural e saudável numa mostra que se sedimenta nesta sua 10ª edição tanto pela qualidade dos espetáculos quanto pela programação paralela. Mas vale pensar se a internacionalização seria o melhor rumo.

Há muitos festivais internacionais no País, porém apenas duas cidades abrigam os nacionais de grande porte: Recife e Curitiba. Por muitas razões, Recife tem vocação para ser mostra anual de importância para o desenvolvimento da cena brasileira. Por transcorrer no fim do ano, pode funcionar como espécie de balanço anual. Por sua localização, pode tornar-se espaço de repercussão da cena nordestina para os demais Estados do País. Tal papel poderia resultar num interessante, e desejado, deslocamento do chamado ''''eixo'''' (Rio-São Paulo), tema de um dos debates do evento.

Ressalte-se que a mostra de Curitiba se inspira num modelo europeu semelhante ao das feiras de arte: vitrine para negócios. ''''Na Europa há muitos festivais que são ponto de encontro de produtores e agentes'''', diz Juliana Gontijo, atriz do grupo As Graças, de São Paulo, presente no evento com duas ótimas peças - o infantil Poemas para Brincar, espetáculo de bonecos criado a partir de poesias de José Paulo Paes, e Noite de Reis, de Shakespeare, divertida e crítica encenação feita para a rua, dirigida por Marco Antonio Rodrigues.

''''O melhor dos festivais é esse tempo e espaço para os encontros'''', afirma a atriz e diretora Denise Weinberg que ministra uma das oficinas da 10ª edição - Interpretação Realista para a Cena Contemporânea. O público alvo, jovens atores, também marca presença numa das salas da ampla Livraria Cultura do Recife, palco de encontros diários entre dramaturgos e acadêmicos. Entre os autores participantes estão o amazonense Francisco Carlos, o pernambucano Newton Moreno, o cearense Marcos Barbosa, a mineira Grace Passô e o carioca Roberto Alvim. Entre os acadêmicos, Luis Fernando Ramos, da Universidade de São Paulo, Fran Teixeira, da Universidade Federal do Ceará, e Luís Augusto Reis, da Universidade Federal de Pernambuco. A cada dia, dois dramaturgos têm um de seus textos lido por atores locais, comentado pelo acadêmico convidado e debatido com a platéia. Tudo aberto ao público e grátis.

Tais eventos têm importância até para apurar o olhar para espetáculos de fruição mais difícil, como O Pupilo Quer Ser Tutor, texto de Peter Handke dirigido por Francisco Medeiros com os atores Nazareno Pereira (tutor) e Leon de Paula (pupilo), de Santa Catarina. Por coincidência, a importância das rubricas (indicações do autor) foi tema do debate que envolveu Luis Fernando Ramos, Francisco Carlos e Roberto Alvim. ''''Há diferentes tipos de indicações. Encenar um Beckett sem respeitar as rubricas está errado, elas fazem parte da escrita da peça, da poética da cena'''', defendeu Roberto Alvim.

O raciocínio vale para essa peça de Peter Handke. A carga poética brota das ações e da tensão que os atores conseguem estabelecer no palco - bastante potente nessa encenação. Trata-se de uma peça sem palavras. A escrita do autor, nesse caso, está nas indicações. Dois trabalhadores numa cabana rústica, muitos silêncios, poucas e precisas ações vão desvendando aos poucos as relações de poder entre dois homens, e suas implicações emocionais. A não ser pelos climas induzidos pela trilha sonora, talvez até excessiva de início, nada é dado de bandeja para o espectador, obrigado a fazer um exercício de olhar para ''''perceber'''' o que se passa, para ''''ler'''' a cena. Tudo sutil, estilizado, marcado, teatral. ''''É importante ter um espetáculo assim no festival'''', diz o curador Kil Abreu.
(A repórter viajou a convite da organização do festival)







16/07/2008 - 09h18

Grupo catarinense discute relações de poder em peça

LUCAS NEVES
Enviado especial da Folha de S.Paulo a São José do Rio Preto (SP)
Na preparação para montar "O Pupilo Quer Ser Tutor", peça do austríaco Peter Handke que se despede hoje do Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto --e chega a São Paulo, no Sesc Consolação, dia 1º--, a companhia catarinense Teatro Sim... Por que Não?!!! e o diretor convidado Francisco Medeiros consultaram o original alemão e traduções em francês, italiano, espanhol e português de Portugal.
Leia mais sobre o festival no blog Cacilda
O preciosismo é especialmente curioso por se tratar de um texto que apenas encadeia rubricas do autor. Durante quase uma hora, os dois atores em cena não entabulam nenhum diálogo sequer.
"Era preciso saber exatamente o que Handke falava, seguir aquilo da maneira mais rigorosa possível", justifica Medeiros. E o que o dramaturgo fala sem verbalizar é do poder e dos laços criados a partir dele. A cada ação prosaica, como descalçar os sapatos ou cortar as unhas do pé, o tutor (que pode ser um pai autoritário, um empregador intimidador, um seqüestrador afeito à tortura psicológica, quem sabe) renova o cabresto sobre o outro.
Não há coerção explícita nem ordens eloqüentes: bastam o olhar petrificado, a altivez e o silêncio sem fim do mais experiente para que tudo seja arrumado, limpo, guardado no casebre do interior alemão.
"O corpo tem importância fundamental neste espetáculo, já que não existe sustentação verbal. O que vemos é um discurso das ações físicas que escapa ao realismo. Até tivemos de inventar uma categoria para caber nos roteiros de teatro [dos jornais]: mimodrama [pantomima dramática]", diz Medeiros.
Roteirista de Wenders
Esse "teatro de suspensão" proposto por Handke, que escanteia a linearidade e dilata o tempo, tem um ascendente bem conhecido no cinema: o austríaco é co-autor do roteiro de "Asas do Desejo" (1987), em que Wim Wenders acompanha dois anjos à cata de almas desamparadas na Berlim pré-queda do Muro.
Nos dois trabalhos, importam mais a criação de climas e as sutis alternâncias emocionais do que o enredo; a dissertação poética toma o lugar da narração tradicional, objetiva.
Apesar de o texto ter cenas que evidenciam a humilhação a que é submetido (ou a que aceita se submeter?) o pupilo, Medeiros afirma que não cabe demonizar seu algoz.
"Tomamos [a equipe da peça] o cuidado de não separar de um jeito maniqueísta. Não conheço ninguém que nunca tenha se confundido com o poder. Pupilo e tutor estão em todos nós."
O jornalista LUCAS NEVES viajou a convite da organização do festival

Crítica | O Pupilo Quer Ser Tutor por Maurício Alcântara

Ásperas Texturas

Num festival cujo tema proposto pela curadoria é tão abrangente como TEXTuras (vem cá, sério mesmo, o que NÃO se encaixaria nessa proposta afinal?), a obra que mais parece estabelecer uma nova “textura” entre a dramaturgia e o que é encenado é, curiosamente, uma peça que não parte da verbalização de TEXTos, mas do encadeamento de movimentos entre dois personagens: um mais velho, mais experiente (e, por isso, mais poderoso) e um jovem que, quase inconscientemente, legitima a autoridade de seu tutor.
Não, não é uma historinha contada através de pantomima (adoro essa palavra!): em O Pupilo Quer Ser Tutor não há substituição de diálogos por outros elementos, o silêncio é absoluto. E quando digo “movimentos”, não me refiro a gestos esvaziados de sentido ou repertórios individuais de composição de personagem - cada ação de cada ator encontra seu duplo na reação do outro, e esse jogo é responsável por garantir a manutenção destas relações de poder e de medo.
É esse entrelaçamento de movimentos que estabelece essa nova textura, a “mensagem” vai além do roteiro de Peter Handke e se fortalece com a precisão do cenário, com a sofisticação da iluminação, com a trilha sonora quase cinematográfica (e que não interfere no silêncio abissal entre os dois) e, sobretudo, com os movimentos friamente calculados (e mais carregados de significados do que de intenções) dos personagens. Tudo se emaranha de forma que fica muito claro o que quer dizer o “rigor” a que se referia o diretor Chiquinho (era assim que muitas pessoas o chamavam no festival - o que é simpático e o apelido procede, uma vez que seu nome é Francisco Medeiros) durante os quase-debates críticos do Aldeia FIT.
O resultado é uma peça que não é exatamente uma delícia de se assistir: a opressão daquela pequena cabana (sala de ferramentas? oficina? quartinho escuro?) e o silêncio contaminam toda a platéia, devidamente (des)acomodada na arquibancada da sala instalada num galpão da Swift - o que pode não ser proposital, mas força a participar da aridez do universo criado e, portanto, da textura (não-)narrativa estabelecida. E ironicamente (ou não), a peça que mais me transmitiu esse conceito do FIT 2008 certamente ofereceria muito menos oportunidades de interpretações, leituras e diálogos fora do festival (e longe de suas texturas). Ainda bem que não deixei pra ver no SESC Anchieta.
55 minutos sem nenhuma palavra
Publicado em 21, July, 2008


Crítica: O mimodrama em sua essência

Originária na antiga Roma, a pantomima – conta a tradição que o ator Livius


Milton Ferreira Verderi, especial para o Aplauso Brasil (milton@aplausobrasil.com)

SÃO JOSÉ DO RIO PRETO - Mimodrama: Sinônimo de “jogo de desempenho de papéis”. Designa mais precisamente um pequeno esquete improvisado partindo de um script para dois personagens ou do tema de um monólogo. Um mimodrama não é uma criação abstrata destacada das condições de tempo e de lugar. Palavras e gestos realizados por seus atores estão ligados ao espaço e mimodrama não pode deixar de ter um “lugar”, que lhe é necessário assim como os personagens que o desempenham.

Originária na antiga Roma, a pantomima – conta a tradição que o ator Livius Andronicus estaria rouco em um determinado episódio e assim teria criado o estilo - é uma forma que se caracterizava pela representação da mitologia e de fatos históricos com a presença de um coro – responsável pela narrativa – , de músicos e dopantomimus, um ator que representava, sem palavras, as ações que eram descritas pelo coro.

Pavis indica a existência, na atualidade, de 4 estilos ocidentais de Mímica – o mimodrama, a mímica dançada, a mímica pura e a mímica corporal – mas são conhecidos outros, que se caracterizam pela associação entre eles ou com aqueles presentes no teatro oriental.

Apesar disso, o termo mímica, atualmente, é sinônimo do estilo que mais se popularizou no mundo no último século, o mimodrama, também conhecido como pantomima moderna, visto freqüentemente em programas de variedades ou em números nas ruas das grandes cidades, foi especialmente difundido por Marcel Marceau e seu personagem
Bip.

A peça O Pupilo Quer Ser Tutor, da Cia Teatro Sim...Por Que Não?!!!, de Florianópolis, Santa Catarina, com direção de Francisco Medeiros, texto de Peter Handke com tradução de José Ronaldo Faleiro, nos leva a este universo da pantomima e mímica.

Uma peça densa, sobre relações de poder entre dois homens. Com preparação corporal certeira de Zilá Muniz, onde se vê explorada toda capacidade interpretativa dos atores Leon de Paula e Nazareno Pereira, cuja reposta corporal é imediata dentro da cena, com movimentação precisa e com segurança total. O cenário e figurino de Fernando Marés, nos faz lembrar A Corrida do Ouro, de Charles Chaplin, e O Ilusionista, de Jos Stelling.

A peça mostra a inevitabilidade dos conflitos entre os dois homens para que possam realizar seus respectivos desejos. O poder ditatorial, quase escravagista, onde vemos o tutor tratar o pupilo como se fosse seu animal de estimação, fazendo com que ele saia e entre na casa pela portinhola de animais. Um clima tenso, onde várias vezes nos faz perder o fôlego e prender a respiração na espera da reação do oprimido.

Cenas com serra elétrica em funcionamento, chaleiras no fogo apitando, todos os elementos cênicos condizem exatamente com a cena e dão o suspense necessário pedido pela atuação e direção.

Um espetáculo imperdível, um Mimodrama bem, feito como há muito tempo não se via.


... E o Céu Uniu dois Corações

E o palco uniu duas intenções
Espetáculo do grupo ilhéu Teatro Sim, Porque Não!? retoma o circo-teatro e assegura pura diversão
Aldécio Mostrado/Especial para A Noticia
Florianópolis - O palco do Teatro Álvaro de Carvalho (TAC), na Capital abriga o melodrama "...E o Céu Uniu Dois Corações", texto de Antenor Pimenta, espécime paradigmática do circo-teatro. O grupo ilhéu Teatro Sim, Porque Não!? não economizou esforços e energia para efetivar uma cuidadosa produção. Trouxe de São Paulo a diretora Neyde Veneziano, o cenógrafo Alberto Camarero e a preparadora vocal Sara Lopes, arregimentando um elenco local de 12 integrantes.
A peça é um emblema de um tipo de teatro há muito desaparecido mas que, até 1950, constituiu-se na diversão predileta de nossos avós. O circo-teatro organizou seu repertório em torno de comédias e melodramas facilmente digeríveis - não faltando "O Mártir do Calvário", na Semana Santa - objetivando levar entretenimento a toda a família.
ENREDO
Neyde Veneziano esmerou-se num trabalho que possui traços verdadeiramente arqueológicos: as marcações, os efeitos de cena, a trilha sonora, os ambientes, a visualidade exalam com acerto as práticas correntes entre aqueles intérpretes de outrora e primam pela retomada de convenções há muito desaparecidas. Até mesmo a boca de cena em folha-de-flandres não foi esquecida.
O enredo é muito simples: um vilão clássico assassina e rouba um rico comerciante e faz com que a polícia prenda um jovem que apenas presenciou o ocorrido. Anos depois a filha deste presidiário será a eleita pelo filho do assassino como sua amada, dando início à série de desventuras e tormentos que o casal terá de amargar para fazer triunfar seu amor. Ele, um médico oftalmologista, devolve a visão à avó de sua amada Neli; o pai sai da prisão disposto a recuperar sua honra; o vilão planeja um casamento de ocasião para o filho quando, finalmente, toda a sórdida trama de crimes é descoberta por intermédio de cartas comprometedoras. A morte dos protagonistas será compensada no céu, pois o verdadeiro amor desconhece barreiras.
Pimenta concentrou em cinco atos todas as situações melodramáticas possíveis; coisa que, nas atuais telenovelas, demora meses para acontecer. Esta concentração exige do elenco meios expressivos adequados e disposição histriônica.
Nazareno Pereira e Leon de Paula encarnam os vilões com galhardia, tirando partido das vozes e gestos acertados; Berna Sant'Anna e Mariana Cândido saem-se bem como a avó e Marli, sua amiga protetora; e Evandro Linhares e Fernanda Marcondes vivem o casal de apaixonados exalando sinceridade e juventude, indispensáveis para a verossimilhança do entrecho. Felipe Milaquelli, Ismar Medeiros, Sérgio Cândido e Valdir Silva cumprem a comparsaria com empenho e a contento. Os intérpretes muito se beneficiarão ao longo das apresentações, incorporando as reações da platéia e perdendo o receio do exagero.
CULTURA POPULAR
O melodrama é extremado por natureza. Nele nada é discreto ou sutil. Bem ao contrário, nutre-se mesmo de lágrimas e gargalhadas, de asco e sordidez, de medo e fé, de amor e fome, esses sentimentos basais que estruturam a psique. Busca arrebatar um público predisposto ao turbilhão emocional, distante de qualquer intelectualismo.
Com "...E o Céu Uniu Dois Corações", o grupo atinge um duplo objetivo: resgata com preciosa produção um legítimo produto de nossa cultura popular e investe firme num regime profissional mais do que necessário para o teatro da cidade, como modo de consolidar suas atividades de pesquisa.
Edélcio Mostaço, crítico de teatro
O QUÊ: E O CÉU UNIU DOIS CORAÇÕES. QUANDO: Hoje, amanhã, e sábado, 20h30: domingo, 18h. ONDE: Teatro Álvaro de Carvalho (TAC), praça Pereira Oliveira, rua Marechal Guilherme, 26, centro, tel.: (48) 3028-8070. QUANTO: R$ 20,00/R$ 10,00 (estudantes, idosos ou quem doar uma litro de leite longa vida).



E o céu uniu dois corações

Walter Lima Torres limatorres@ufpr.br
  
Afirmam alguns estudiosos que o gênero melodrama seria uma espécie de herdeiro bastardo do drama histórico ou do drama romântico, que no caso da França encontraria seu melhor exemplo no teatro de Victor Hugo.
Entre nós, ao longo da virada do séc. XIX para o XX, o gênero foi cultivado por meio de traduções e adaptações de títulos do repertório francês bem ao gosto brasileiro do período.
Dos teatros comerciais, onde imperava o teatro musical – burletas, revistas de ano, e mágicas –, sobretudo no Rio de Janeiro, o melodrama passou a ser adotado pelas trupes de circo-teatro como um gênero de forte apelo popular, característica que só confirma sua origem no afamado Boulevard du Crime.
O que se repara no texto de Antenor Pimenta, é exatamente a confirmação daquela matriz paradigmática francesa: intriga espichada em cinco atos; papéis tipos padronizados; vilões contra mocinhos; a profusão de locais para o desenvolvimento da ação entre outros elementos. Estrutura que remonta a noção de pièce bien faite tão ao gosto de um Francisque Sarcey como Arthur Azevedo. Toda essa reelaboração de Antenor Pimenta se dá em função de uma sociedade rural que se urbaniza, constituída por fortes diferenças sociais e a permanência da oposição maniqueísta entre os valores de honra/desonra, moral/imoral, verdade/falsidade, etc. independente do segmento social alto ou baixo. 
Na encenação de Neyde Veneziano, para o grupo Teatro sim... Por que não?!!! , constata-se um excelente exercício de estilo, entorno do melodrama, e um rigoroso ensaio sobre técnica teatral referente ao tempo em que o artista responsável pelo agenciamento lógico da cena era o ensaiador. Este ensaio de técnica teatral pode ser percebido na limpeza da marcação de cena; no uso e emprego das linhas; na lógica do próprio estilo melodramático.
O carismático e talentoso elenco, disciplinado pela batuta segura da diretora, alcança um desempenho notável desde a composição dos perfis dos papéis tipos até a elaboração vocal e corporal de seu jogo de atuação. Este jogo de atuação, que se coloca na fronteira entre o realismo caricato e a estilização harmoniosa, é muito apreciado graças ao trabalho de um gesto em suspensão, que gera por sua vez um esboço de pantomima. Este efeito caracteriza o diálogo entre a matriz histórica e a sua leitura  brasileira.
Toda esta teatralidade é emoldurada por uma cenografia que busca revelar, pelos painéis que compõem o quadro da cena, a precariedade de outrora do próprio circo-teatro brasileiro, sua característica mambembe e sua inventividade diante de recursos escassos.
Tendo em vista que se trata de um melodrama, o efeito de cena é construído na fusão entre o dramático da ação e seu respectivo comentário musical. No caso de E o céu uniu dois corações, temos uma seleção musical que se transforma em música de cena. Bem ao gosto do clássico popular, ou do que seria uma música clássica à altura do tema abordado, a trilha funciona não só como um comentário sugestivo, por vezes jocoso, se comportando, outras vezes, de forma a acirrar a dramaticidade da situação. Este sublinhar da ação dramática realça o jogo dos atores e fomenta a teatralidade natural do gênero melodrama.
A direção bem como os atores trabalham a favor do texto de Antenor Pimenta e neste sentido, a encenação coloca em evidência como sujeito da ação o Destino, na figura do Céu. O Céu, que une dois corações que na Terra não podem consumar o seu sublime amor, é o verdadeiro sujeito da ação. O Céu torna-se uma espécie de personagem alegórico oculto que somente ao término do espetáculo, numa cena brilhantemente apoteótica, revela toda sua dimensão e força dramática. O Céu idealizado por Antenor Pimenta é a atualização de uma mensagem cristã de fortes traços conformistas tal qual a estrutura da novela do rádio. E nesta cadeia entre os meios de comunicação, o melodrama acabou tendo seu arcabouço reaproveitado pela teledramaturgia no folhetim audiovisual.
É perfeitamente reconhecível esta cadeia, e para que tal acontecesse foi imperativa a seriedade do jogo dos atores, que trabalharam sem debochar do texto, possibilitando assim sua atualização graças a um exercício de estilo rigoroso.



Livres e Iguais



LIVRES E IGUAIS: TEATRO TOTAL
Tem uma metáfora do Artaud que diz muito acerca do espetáculo Livres e iguais. O gênio francês fala sobre iluminações, sobre atear fogo ao corpo do espectador. É no livro Linguagem e vida que ele desenha o mapa poético do palco, ou seja, é nesta obra que ele define o que lhe interessa na arte teatral, sobretudo na condição de observador. O livro Queimar a casa, de Eugenio Barba, também tem uma imagem que é a própria carnação do trabalho que está em cartaz no Teatro da UFSC. Barba tem o desejo de realizar um espetáculo-incêndio. Tem por sonho queimar o teatro: um sonho-Fênix. E Livres e iguaiscoloca fogo em matéria fria para incinerar o olhar do espectador.  O espetáculo é antes de tudo um ato de coragem.
Para começar, a dramaturgia assinada por Júlio Maurício, Nazareno Pereira e Nini Beltrame [também diretores da encenação] é construída a partir daDeclaração Universal dos Direitos Humanos. Por isso, como toda arte, o trabalho é um ato de denúncia; contudo, o ato de denúncia em si pode ser um grito solto no ar, pode ser um ato político coletivo, pode, ainda, cair no mero discurso panfletário. Então, perante todos esses riscos, reafirmarmos que estamos diante de um ato de coragem, pois Livres e iguais se afasta dessas falhas e afasias. E mergulha no labirinto da arte poética. Livres e iguais é poesia. Não é teatro dócil e inócuo; é, sim, teatro de impacto.
Pois é do humano fora do seu “natural”, para continuarmos em Artaud, que se fundamentam as cenas do espetáculo. E se teatro é vida, como apregoa Peter Brook, estamos diante da vida e suas premências básicas: o direito à alimentação, o direito ao lazer, ao prazer, à educação, à arte e, sobretudo, o direito ao sonho e à liberdade de escolhas.  O grupo Teatro Sim… Por Que Não!??? foge do mergulho à pieguice e constrói um manual poético a partir de elementos que significam impureza e amorfismo.  Parte do cenário, os bonecos e demais objetos, é confeccionado das sobras humanas, do lixo. O ferro, o aço, o cobre e o plástico tomarão vulto e espelhamento vivo. É dos elementos duros, não poéticos, rejeitados e sem utilidade ao homem que se dá a apropriação para a fusão do calor. Há uma espécie de antropomorfização das coisas imprestáveis. A poética de Manoel de Barros, construtor de nadezas, é evocada inúmeras vezes. Textos bíblicos, como O Livro de Jô, são referências evidentes, sobretudo do recorte feito nas telas de Joan Miró.    
A iluminação, as projeções, a direção, a manipulação dos bonecos e objetos, a sonoplastia que vai dos ritos xâmanicos ao clássico e o aproveitamento de imagens de pintores como Kandisnky e Miró ligadas a imagens dos lixões de nossas cidades criam aquilo que pode ser chamado de uma dramaturgia total, de um teatro total para nos aproximarmos novamente de Eugenio Barba.
Em seu Manifesto por um teatro abortado, Artaud afirma: “Nós não procuramos denunciar como isto se produziu até aqui, como isto sempre foi o fato do teatro, a ilusão daquilo que não existe, mas ao contrário fazer aparecer ante o olhares um certo número de quadros, e imagens indestrutíveis, inegáveis, que falarão ao espírito diretamente. Os objetos, os acessórios, os próprios cenários que figurarão no palco, deverão ser entendidos sentido imediato, sem transposição; deverão ser tomados não pelo que representam, mas pelo que são na realidade. A encenação propriamente dita, as evoluções dos atores, não deverão ser consideradas senão como signos visíveis de um linguagem invisível e secreta. Não haverá um só gesto de teatro que não carregará atrás de si toda a fatalidade da vida e os misteriosos encontros dos sonhos.” Livres e iguais é uma sucessão de imagens indestrutíveis, é teatro-poesia de impacto, teatro-total. Vai de margem a margem às fraturas.
Então, saiam de suas casas e apareçam ali no Teatro da UFSC, neste final de semana, (sexta, sábado e domingo; às 20h30 min) porque o espetáculo, que é um ato absoluto de coragem e poesia, precisa de espectador que tenha coragem de beber na “terceira margem do rio”.  Muito mais não posso dizer. Só sei que Livres e iguais é capaz de esquentar a pedra e tatuar as lágrimas.


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